No maravilhoso documentário Will & Harper, disponível na Netflix, uma das cenas mais interessantes e que melhor demonstra a mistura de sentimentos ao redor de uma cirurgia de mudança de gênero acontece logo nos primeiros minutos. Numa obra focada em demonstrar o impacto dessa decisão nas relações da pessoa que transiciona com o mundo e com aqueles que a cercam, ver a roteirista Harper Steele ler o e-mail que enviou ao amigo Will Ferrell comunicando-o sobre sua decisão diz muito sobre o que essa escolha realmente significa. No recorte profundo e bem-humorado, ela diz "acredito que uma cirurgia de mudança de gênero não deva mudar a minha personalidade, então, eu devo passar de um babaca para uma vaca".
E essa é apenas uma das tantas razões pelas quais o filme Emília Perez deveria ser laureado única e exclusivamente com o ostracismo. E aqui refiro o ostracismo figurado, moderno, não a perspectiva histórica grega, que nos permitiria revisitá-lo em 10 anos.
Por mais que esta possa parecer uma volta complexa e longa para trazer o leitor até o lugar detestável em que se vê obrigado a saber mais sobre o longa do diretor francês Jacques Audiard, a razão para tal é simples. Uma breve visita a músicas como La Vaginoplastia ou El Mal são o suficiente para que qualquer um encontre cerca de 245 razões para criticar o filme. Um breve corte, como os infinitos que circulam pelas redes sociais, são mais que o suficiente para atestar como a representação mexicana falhou miseravelmente - quem diria? - ao desinteressar-se por atrizes latinas.
No entanto, o cerne das problemáticas ao redor desse filme, infelizmente, são alcançadas apenas por aqueles que perdem 130 minutos de vida tentando entender o que a Academia viu, pois a verdade é que a narrativa se alicerça em tantos preconceitos, estigmas sociais, xenofobia e elitismo, que seria impossível fazer caber em um reels ou um ano de terapia - mas Emília Perez faz caber em seu roteiro.
Entretanto, ainda que com certo esforço, é possível nos afastarmos de tudo isso e das polêmicas ao redor da divulgação e olhar exclusivamente para o fato da trama se desenrolar ao redor de 3 mulheres fortes, imponentes e que lutam para existir num meio violento. O problema é o que você vê quando olha para aí.
Um traficante grande, conhecido, temido e cruel, num dado momento da vida, decide encarar a cirurgia e mudar quem ele é. Não para fugir de seus crimes, mas porque não se identifica como homem. Spoiler Alert: Ele se safa de todos os crimes ao fazer a cirurgia. Mas, segundo a narrativa, não há problema, pois agora que a personagem é uma mulher, torna-se uma pessoa boa, abnegada e que quer ajudar a população que sofre com os desaparecimentos em massa causados pelo tráfico - desaparecimentos estes que deveriam cair também na conta da própria Emília, mas são esquecidos.
Ao identificar-se como mulher, Emília Perez torna-se exatamente o que o machismo e o patriarcado esperam que uma mulher seja: boa, altruísta, frágil, fraca, crente. Uma mártir, sempre disposta a aceitar honradamente seu destino trágico. Afinal, o que poderia ser a vida de uma mulher, se não uma tragédia?
As cirurgias as quais Manitas Del Monte foi submetido não mudaram apenas aparência e gênero; por alguma razão, mudaram também sua personalidade, sua essência, seu instinto e sua habilidade de sobreviver ao mundo que violento que ela mesma ajudou a construir.
No final das contas, a única mensagem clara e inegavelmente entregue pelo roteiro construído através do olhar fetichista de um esnobe europeu é a de que meninas - especialmente as meninas más - não têm final feliz.
E a violência? Ah, isso é coisa dos homens.
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